domingo, 9 de janeiro de 2011

A Cartomante


                                                    A Cartomante
HAMLET observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Mais ou menos assim também dizia minha nona quando afirmava que onde tem fumaça tem fogo.  Era a mesma explicação que dava a bela Nita ao moço Ramiro, numa sexta-feira 13, as margens do Rio Soturno, num lindo dia na Quarta Colônia, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. São uns “baucos”, como já dizia a nona.  Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, sempre de olho no seu laptop sobre a mesa, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! interrompeu Ramiro, rindo. Está confiando muito no seu taco gringa!!!
— Não diga isso, Ramiro. Se você soubesse como eu tenho andado por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... passo as tardes à beira do Soturno refletindo sobre isso.
Ramiro pegou-lhe nas mãos, observou seus lindos anéis e suas unhas decoradas, mania da época.  Olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas ruas. Varela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar no  prédio.
— Onde é o apartamento?
— Aqui perto, na Alameda. Não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Ramiro riu outra vez: — Tu acreditas mesmo nessas coisas? Perguntou-lhe. 
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Nenhum momento esquecia as palavras da Nona. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.
Percebeu que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso. Teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que ao passar dos anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Ramiro não acreditava em nada. Mama mia, que descrente! Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mais, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando. Nesse momento, brincou com a cachorrada que estava próxima, e saiu batendo os “cascos”.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Nita estava certa de ser amada; Ramiro, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. Era o garanhão!  Homem de verdade.
O local do encontro era no antigo condomínio dos Padres Palotinos, na pequena cidade de Faxinal do Soturno, onde próximo morava uma antiga amiga de Nita. Popularmente conhecido como antigo Seminário, dentre os corredores abandonados é que se escondiam os segredos desse amor.
Esta desceu pela Alameda do Santuário na direção da praça matriz, onde residia; Ramiro desceu pela rua
Trinta de Novembro, olhando de passagem para a antiga casa da cartomante.
Varela, Ramiro e Nita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Varela seguiu a carreira de Advogado. Ramiro entrou no poder público municipal, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Ramiro preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público com seu amigo prefeito. Um dia, voltou Varela da capital, onde casara com uma dama formosa e meio bobinha; abandonou a advocacia e veio abrir banca do jogo do bicho. Isso lhe rendeu muito dinheiro, mesmo que fosse ilegal. Mas Varela sabia driblar a lei com seu jeitinho brasileiro, a assim foi enriquecendo.
Ramiro arranjou-lhe um belo apartamento para os lados da Escola Dom Antônio Reis, e foi ao aeroporto de Santa Maria recebê-lo. Havia comprado o melhor carrão da Quarta Colônia da marca Audi, certamente vindo de alguma enchente de São Paulo, pois o preço foi muito abaixo da tabela Fipe. Mas contentou-se mesmo assim. Estava se sentindo o cara.
—E aí Gringo? Exclamou Nita, estendendo-lhe a mão com suas lindas unhas decoradas.  Não imagina como meu marido é seu amigo. Falava sempre em você e das aventuras no interior.  Das arapucas que faziam, dos bodoques para caçar passarinho e das pescarias no Rio Soturno.
Ramiro e Varela olharam-se com ternura. Eram amigos de sangue. Depois, Ramiro confessou de si para si que a mulher do Varela não desmentia os emails do marido. Realmente era graciosa e viva nos gestos, olhos bem pintados, boca carnuda e provocativa. Dona de lindas pernas esculpidas e belos peitos siliconados com longos cabelos tratados com escova progressiva. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Varela vinte e nove e Ramiro vinte e seis.
Entretanto, a calvície de Varela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Ramiro era um ingênuo na vida moral e prática. Adorava passar as tardes tomando uma gelada no Bar da Mari na avenida central com os amigos. Quando podia fazer uma fezinha no jogo do bicho não desperdiçava.
 Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos da Óptica Orlandi, que a natureza põe no berço de
alguns para adiantar os anos. Mas seu desejo, com o tempo era colocar lentes de contato aqui mesmo na cidade, na Clínica oftalmológica. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Ramiro, vítima do mosquito da dengue. E nesse desastre que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Pobre nona. Que descanse na paz do Senhor. Fazia uma polenta como ninguém. E o mondongo então... Ah não fosse o cheiro desagradável, mas o sabor era inigualável.
Varela cuidou do enterro, das flores providenciadas junto a Floricultura Mazzolin de Fiori, dos sufrágios e do inventário; Nita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, observando aquele corpo escultural, muitas vezes na barranca do rio.  Era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher, bonita, um tremendo avião. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, adoravam Playstation III, iam juntos ao shopping e passeios no São Pio. Ramiro ensinou-lhe as o jogo de paciência no PC e o The sims que jogavam às noites; —ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas iam bem. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Nita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas, as sigilosas mensagens ao celular.
Um dia, fazendo ele aniversário, recebeu de Varela uma garrafa de graspa com uma guampa e um jogo dos mais finos espetos para churrasco personalizados para o amigo e de Nita apenas um pedaço de papel de pão com um vulgar cumprimento a lápis, escrito após Nita chegar da Padaria Bisognin com o pão quentinho e foi então que ele pôde ler no próprio coração, a suspeita da traição.  Não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho ainda cheirando a pão.  Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha praça da matriz, em que pela primeira vez passeara com a mulher amada, tomando sorvete, sentados sobre os degraus da Igreja, ao sol de uma tarde de domingo sob os olhos do padroeiro.
Assim é o homem, assim são as coisas que o cercam. Assim são as mulheres. Ah.. essas mulheres!
Ramiro quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Nita, como uma serpente, foi se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o chinelo havaianas se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima dos paralelepípedos da avenida, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Varela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Ramiro um sms anônimo, que lhe chamava imoral, traidor, canalha e dizia que o caso de aventura era sabido de todos. Em breve o You Tube publicaria alguns de seus vídeos comprovando a imoralidade do casal. As velhinhas após a missa do domingo já comentavam o fato nas esquinas do centro da cidade. Ramiro teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a diminuir as visitas à casa de Varela. Este notou-lhe as ausências. Ramiro respondeu que o motivo era uma paixão pelo MSN que lhe roubava o tempo teclando. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entra também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a pena a ser paga pela infração do  ato cometido. Foi por esse tempo que Nita, desconfiada e com medo de ser descoberta, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do sumiço de Ramiro. Teria ele encontrado outra mulher no Chat Terra? Teria encontrado no disk namoro alguém com cabelos mais lisos do que ela? Seria alguma gringa da Quarta Colônia o motivo do seu sumiço? Uma dessas que faz polenta, geléia de uva e pão como ninguém?
Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Ramiro recebeu mais dois ou três emails, bem como algumas mensagens no celular de número restrito  tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Nita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento:
— A virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Ramiro ficou mais sossegado; temia que o anônimo o delatasse a Varela e a catástrofe viria então sem remédio. Nita concordou que era possível. E o peso do remorso e do medo começou a se revelar.
Daí a algum tempo Varela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Nita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Ramiro devia voltar à casa deles, montar campeonato de Play Statin entre eles, planejarem pescarias e assim tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Ramiro não concordava; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita do casou ou denúncia. Mais valia ter mais cuidado sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram corresponderem-se através de emails, scraps e sms em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas, muita dor.
— Não se vá, não me abandone por favor, pois sem você vou ficar louco...
No dia seguinte, estando no trabalho, recebeu Ramiro este bilhete de Varela escrito no próprio papel do jogo do bicho: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te em particular. Vem sem demora." Era mais de meio-dia pelo horário de verão.  Ramiro saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, pareceu-lhe trêmula. Ele combinou todas essas coisas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel e suor no rosto.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Nita subjugada e lacrimosa negando veemente a traição, Varela indignado, pegando da caneta e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Ramiro estremeceu, tinha medo de ser descoberto: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. Jamais um gaúcho macho recuaria. Lembrava que a vó dizia – Seja Macho como tua vó já foi um dia. De caminho, lembrou-se de dar uma passadinha no seu apartamento; podia achar algum recado de Nita na caixa de correio, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verdadeira; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Varela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto. Estava mesmo sendo descoberto. Varela sentir-se-ia um “corno” traído.
Ramiro ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Varela cantando-lhe ao pé do ouvido “O jeito é dá uma fugidinha com você... primeiro a gente foge depois a gente vê...”
"Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê?
Era perto de uma hora da tarde e a camada de raios UVB queimava-lhe o rosto sem protetor solar que havia deixado sobre a mesa do escritório. A comoção crescia de minuto a minuto. Jurava para si mesmo nunca mais envolver-se com mulher alheia. Pensou até em assistir todas as missas de domingo até o fim de seus dias. Pensou também entrar para a congregação dos Palotinos, quem sabe seria o melhor a ser feito se suas suspeitas não se confirmassem.
Tanto imaginou o que iria se passar que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo.  Cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil.  Pensou em ligar para um conhecido morador do Morro do Alemão, porém, desistiu diante da ocupação da polícia no último mês. Logo seria descoberto então desistiu da ideia envergonhada de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção da Alameda do Santuário. Antes parou, ajoelhou-se junto a Mãe MTA e rezou. Chegou, entrou e seguiu a trote largo.
"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."
 O tempo voava, e ele não tardaria a bater com o perigo. Quase no fim da Alameda teve de parar, a rua estava atravancada com a carroça de um catador que caíra devido ao excesso de peso. Era dia de coleta de material reciclável e os moradores haviam descartado muita coisa. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, junto ao pé de canela ficava a casa da cartomante, a quem Nita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e cheias de curiosos do incidente da rua.
Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Ramiro reclinou-se no pé de canela para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. As lembranças da nona eram fortes. O medo que ela tinha do pecado, e a certeza do inferno que ela tanto temia.
 O catador propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperava. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: — Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Ramiro fechava os olhos, pensava em outras coisas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras do bilhete: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. Lembrou das orações da nona, mas não sabia todas elas. Se ao menos tivesse aprendido...
A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar. Ramiro achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários: e de novo a mesma frase da música do Michel Teló: “O jeito é, da uma fugidinha com você.. primeiro a gente foge, depois a gente vê....”
Deu por si na calçada, ao pé da porta. Deixou seu Audi estacionado a sombra, por medo que o sol desbotasse os bancos. Ligou o alarme e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, não eram lâmpadas econômicas. Os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso certamente pela falta de limpeza; mas ele não, viu nem sentiu nada.
Subiu e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. A campainha não funcionava. Veio uma mulher; era a cartomante.
Sua aparência era envelhecida, mas não era tão feia assim. Usava brincos grandes e vestido longo. Calçava lindas plataformas.
Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal iluminada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos.
Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio. Que falta fazia um financiamento pelo “Minha casa, minha vida” para esta mulher. Certamente seu crédito não seria aprovado pela falta de comprovação financeira.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Ramiro. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, bem gringa, daquelas levemente loiras e magras, com grandes olhos azuis. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Ramiro, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas com esmalte fosco nas cores da moda; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Ramiro tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Ramiro inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Nita, de seus belos silicones, e do bem que lhe faria uma lipoaspiração. Também falou da possibilidade de uma fezinha dar certo e ele ficar milionário, apostando na cobra. Ramiro estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante, observando fixamente suas lindas unhas.
Esta se levantou rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato... vá pra balada. Aproveite o Kasarão Arena. Só lembre-se de uma coisa: Se beber não dirija.
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Ramiro estremeceu, como se fosse a mão da própria nona, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes limpando-os com as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Ramiro, ansioso por sair, não sabia quanto pagar; ignorava o preço. Lembrou que estava com seu Visa na carteira e todos seus talões de cheques.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas queres mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Ramiro tirou duas notas de cem reais e deu-lhe. Os olhos da cartomante brilharam. O preço usual era cinquenta reais.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do Senhor.  Vá, vá, tranquilo. Olhe a escada, é escura; ponha o boné que o sol está quente lá fora...
A cartomante tinha já guardado as notas na cômoda, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Ramiro despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com as notas de cem subia cantarolando Michel Teló. Ramiro achou o pé de Canela esperando; a rua estava livre. Entrou no carro e seguiu acelerando. Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Varela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele acelerando seu possante Audi. Naquele momento pensou até em adquirir uma Ferrari, mas deixou para decidir mais tarde.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade...  Pensou em dar um Play Station de presente ao amigo e ensinar-lhe a jogar Guitar Hero. De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação:— Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pelo asfalto, Ramiro olhou para o Rio Soturno, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável, ou nem tanto assim.  Jurou para si mesmo também cuidar da saúde e caminhar todas as tardes na ciclovia, assim poderia admirar o Soturno ao final do trajeto, observando o pôr do sol.
Pensou também em subir o São Pio uma vez por mês a pé, rezando todo o trajeto e quando estivesse lá em cima, cantaria louvores ao senhor por ser tão bom e generoso.
Daí a pouco chegou à casa de Varela. Desceu do Audi, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou.  Um gato pulguento dormia a beira da calçada, mas ele ignorou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se com o controle remoto e apareceu-lhe o poderoso rei do jogo do bicho Varela. Acho que os últimos fios que lhe sobravam na cabeça não mais se encontravam nela. Teria ele mudado o shampoo?
— Desculpa, não pude vir mais cedo; estava fazendo compras para o final de semana, sabe como são os mercados daqui... quê há?
Varela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Ramiro não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre a parreira, estava Nita morta e ensangüentada.
Cartomante fajuta. Levou os duzentos do gringo!
Varela pegou-o pela gola da camisa de algodão, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
                                                                            FIM

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