quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Consumismo





Alienação e abundância
Abundância gera descaso. Somos apegados ao que é escasso. Tudo que é raro, é caro. Em meio à escassez damos mais valor às coisas e vivemos com mais consciência. Por isso muitas vezes concluo que a pior coisa que pode acontecer a algumas pessoas é nascerem em meio à abundância. Terão sim, muitas facilidades, mas facilidade demais nos impede de conhecermos todas as nossas forças e aptidões. É na exigência da dificuldade que se revelam nossas mais profundas forças.
Penso que antigamente, a vida era tão dura e difícil, que as pessoas não tinham tempo para esse tipo de atitude. A uma maioria só restava lutar pela vida e pela sobrevivência. Passagens de frivolidade e superficialidade no passado são mais comumente associadas às cortes e às realezas, já que a riqueza e a fartura lhes permitiam tais leviandades. Atualmente as camadas mais pobres da sociedade continuam mais atentas aos itens essencias da vida: trabalho, alimentação, vestuário, moradia, etc. Ser bem sucedido para esse grupo significa não deixar faltar nada do essencial.
Mas a classe média, abastada, mais se atém às aparências e ao status do que em desenvolver-se integralmente. Cresceram em poder aquisitivo, mas permanecem com a mesma essência de antes, tão preocupada com os bens materiais, e sem muito tempo – nem tampouco interesse – para dedicar-se a atividades mais nobres, como política, estudos, artes, etc. Pensar é atividade que demanda esforço, mas a classe média que trabalha 12, 13, 15 horas por dia para manter seu padrão de vida condicionado artificialmente, chega em casa tão cansada que nem cogita ler um livro ou se manter informado sobre a política do país. Acham que assistir ao Jornal Nacional basta. Suas mentes estão tão cansadas que lhes é conveniente e agradável sentar em frente à TV para assistir, anestesiados e “descansando”, preenchendo a mente com mais influências acondicionadoras. Quem sabe agora o comercial que passará entre os intervalos da novela das 8 dirá: “Está na hora de você trocar seu celular”! E assim o círculo vicioso mantem o impulso.
É um povo imenso que vive meio perdido, à deriva nesse mar de informações, sem qualquer balizamento sólido, tanto moral, quanto espiritual. Imagino que isso aconteça porque não somos orientados para saber o que fazer com nosso tempo livre. As atividades mais saudáveis e intensas costumam ser vistas como bobagens sem importância. Nossa opinião geral está tão impregnada com a idéia de que a única atividade válida é o trabalho, que nos sentimos um tanto culpados quando estamos num momento de prazer, ou desfrutando de atividades de lazer, ou cuidando da própria saúde, ou estudando através de momentos de leitura, etc. Sentimos que estamos “perdendo tempo”.
E por não saber o que fazer com o nosso tempo livre, e também por preocupação com as opiniões alheias, vamos vivendo e se alienando dos valores realmente importantes e essenciais da vida e da sociedade. Nos submetemos ao padrão consumista meio que por osmose, inconscientes do que fazemos e achando tudo absolutamente normal. Não perguntamos por que temos que consumir tanto, por que tenho que realmente de trocar minha televisão, por que devo consumir este e aquele produto e a mais importante das questões não feitas: Aonde esse tipo de atitude automática, adquirida por influência dos outros e da mídia, vai me levar, e aonde vai levar o futuro da sociedade e do planeta.
Marketing, propaganda, publicidade…
A publicidade e o marketing, aliados a alienação geral das pessoas, são considerados os maiores vilões atuais, estimuladores do consumo exagerado e da consequente devastação do meio ambiente, que ocorre de várias formas na medida em que mais matéria-prima é extraída dos meios naturais e na medida em que mais e mais lixo é gerado diariamente pelos consumidores, entre outras demandas agressoras ao equilíbrio ambiental.
Ambos promovem um desvirtuamento geral dos valores das pessoas. Não só criam necessidades sem as quais vivíamos muito bem e muito melhor integrados ao ambiente (e há quem negue), como abusam de nossa natureza para nos motivar ao consumo. Sentimentos como Ansiedade, Preocupação, Inveja, Alienação, Compulsão, Vaidade, Desejo, Modismo, Sugestionabilidade, Insegurança (Para dizer que tem, Para ser igual, Para ser diferente), Necessidades emocionais, enfim, são facilmente manipulados através de imagens e sons para nos fazer crêr que precisamos desse e daquele produto.
Escrevi um texto tempos atrás sobre como a publicidade trata as pessoas como idiotas (clique e leia) para torná-las mais idiotas ainda. Dizem que os governantes não fazem questão de melhorar a grade de ensino nas escolas, porque eleitores mais inteligentes e informados são mais difíceis de manobrar. Tenha certeza, para a publicidade, quanto mais idiota e desprovido de pensamento crítico o consumidor for, mais fácil será manobrá-lo a comprar os produtos anunciados.
Consumo consciente
Como filho da década de 80, peguei o finalzinho de um tempo em que os produtos nos eram caros. Um brinquedo era O BRINQUEDO, com o qual passavamos horas e horas, e tendíamos a cuidar zelosamente, e com ele sonhávamos e vivíamos. Da mesma forma os adultos tinham em seus objetos verdadeiros entes que os acompanhavam por todo o seu – à época, longo ciclo de duração – até que impossibilitados de funcionar devidamente, os descartávamos ou ainda tentávamos um último conserto, etc. Isso não existe mais. As crianças de hoje tem brinquedos à revelia, não se apegam a nada. Alternam seus jogos de vídeo-game como quem troca de roupa. Diferentemente da minha época, em que alugávamos as “fitas” de vídeo-game e as expremíamos o fim de semana inteiro até cansar de jogar.
Produtos personalizados, raros, com vida própria, muito nossos estão voltando à moda. Por um lado é bom que as pessoas, por poucas que sejam, estejam se tornando capazes de desejar algo mais “humano” e menos padronizado. Porém o fato de ser uma “moda” demonstra que pode ser algo passageiro, e o que mais distancia as pessoas desse modo de consumo consciente é o elitismo que o rodeia, devido aos custos comparavelmente mais altos de tais produtos.
Associo a situação atual mundo x consumismo sob aquele ditado que diz que a ocasião faz o ladrão. É assim que somos como sociedade e sempre fomos. Só que antigamente não havia essa fartura de produtos e a necessidade de escoá-los. Tudo isso é fruto da natureza humana, inconsciente e destrutiva.
Por isso creio que a única solução possível é, ainda e sempre, a tão falada EDUCAÇÃO. Somente disseminando a boa informação é que chegaremos a uma nova sociedade, agora com cidadãos conscientemente críticos. Ou seja, quando decidirmos pela atitude certa PORQUE É a atitude certa a se tomar, e não porque obteremos alguma vantagem ao tomá-la.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Atividades sobre figuras de linguagem

Check out this SlideShare Presentation:


Atividade sobre Figuras de Linguagem

Identifique as figuras de linguagem presentes nas passagens abaixo:

a) A brisa do Brasil beija e balança ( Castro Alves) aliteração
b) Antes de sair, tomamos um cálice de licor. ( metonímia)
c) Amou daquela vez como se fosse máquina. (Chico Buarque) (comparação)
d) Na estante, livros e mais livros. ( elipse)
e) Sentou-se no braço da poltrona para descansar. ( catacrese)
f) Ela se preocupa tanto com o passado que esquece o presente. (antítese)
h) Aquele rapaz não é legal, ele subtraiu dinheiro. (eufemismo)
i) Como você escreve bem, meu vizinho de 5 anos teria feito uma redação melhor! (ironia)
j) Já lhe disse isso um milhão de vezes (hipérbole)
l) A formiga disse para a cigarra: ” Cantou...agora dança!” (prosopopéia)
m) O que o vago e incógnito desejo de ser eu mesmo de meu ser me deu." (Fernando Pessoa) (assonância)
n) Alguns estudam, outros não. (zeugma)
o) Morreu o presidente (hipérbato)
p) Vi com meus próprios olhos. (pleonasmo)
q) Não sopra o vento; não gemem as vagas; não murmuram os rios. (assíndeto)
r) O menino resmunga, e chora, e esperneia, e grita, e maltrata. (polissíndeto)
s) Eu, parece-me que vou desmaiar (anacoluto)
t) Olha a voz que me resta / Olha a veia que salta / Olha a gota que falta / Pro desfecho que falta / Por favor." (Chico Buarque) ( anáfora)
u) A Amazônia é o pulmão do mundo. (metáfora)
v) “Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios" (Vinicius de Moraes) (Antítese)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Vinho de nantra pipa

sábado, 15 de janeiro de 2011
Vinho de nantra pipa
Intertextualidade – Acartomante x Vinho de nantra pipa

Este texto foi baseado no Conto “A Cartomante” de Machado de Assis, mostrando um texto com outra versão, mais de humor do que propriamente trágica e contendo partes verídicas.




VINHO DE NANTRA PIPA


Disse seu Vitório: “ Vinho de nantra pipa é sempre vinho de nantra pipa!”.
Como todo italiano que se preza, seu Vitório sabia apreciar um bom vinho e uma bela mulher. Ele como agricultor que plantava arroz e cultivava parreirais, na época de colheita, sempre contratava diaristas como mão-de-obra para o trabalho, dos quais haviam homens e mulheres.
Seu Vitório era homem fagueiro, festeiro, mulherengo e vivia se engraçando com as mulheres da lida, principalmente as mocinhas. Chamava-as de uva Rosê, uva Niágara... e assim nomeáva-as com nomes de qualidades de uva de acordo com o temperamento de cada uma.
- Que uva de mesa, disse ele ao ver uma moça, corpo bem feito, alta, cabelos longos e olhos azuis, que chegou um dia em sua propriedade para ajudar na colheita, junto com os outros diaristas.
Safira, mulher viúva, mãe de dois meninos: João e José, fez-se de sonsa e respondeu: - Há! O senhor cultiva uva de mesa! Gosto muito de colher uva, ainda mais as de mesa que rendem o trabalho, são mais graúdas. E assim, dia após dia, ele fazia insinuações e gracejos com Safira e as outras mocinhas, que só pensavam em trabalhar para ajudar no sustento de casa, ignorando-o. Mesmo assim ele continuava largando indiretas como: - Adoro minhas uvas! Ainda mais as maduras!, - Minha uva gostosa, doce, tu me tonteia como vinho de pipa da boa!
Safira, já indignada com a situação constrangedora pensa: - Vou dar um jeito de falar com dona Judite pra pegar esse safado!
No dia seguinte, amanheceu chovendo muito e Judite fala: - Vitório, tu que conhece mais as mulher da lida, busca uma pra me ajudá na cozinha, que hoje vou fazê geléia de uva, aproveitá que piove e non dá pra fazê o serviço lá fora.
- Dio nono, tudo io! Piove, piove, que nem os cane non sai no terrero!
- Vá, vá! Tu tá sempre correndo lavora debaxo do tempo, aproveita e pega melancia
pra gente comê de tarde.
Lá se foi seu Vitório estrada afora com a charrete, capa e guarda-chuva, parou no caminho e colheu algumas melancias, colocou num saco nolombo do cavalo e seguiu em direção a casa de Safira. Chegando lá, parou, olhou, estava tudo fechado, ia embora, mas resolveu descer e bater.
Safira abre a porta e ele pergunta: - Posso entrar?
- Não, responde Safira, meus filhos estão deitados, o que o senhor quer?
- Non te preocupa non, só vim te busca pra ajudá a Judite na cozinha, ela vai fazê geléia de uva e pediu pra te buscá, pago bem!
Tá bem, vô vê os menino e já venho.
Safira beija os filhos e diz: - Ficam com Deus, a mãe vai trabalha pra comprá pão e leite prá janta. José o menor diz: - Tô com medo mãe!
Não fica com medo filho preciso ir, reza pro anjo da guarda. Então, João diz: - Pode dexa mãe, vô cuidá do mano.
- A mãe só vem a tardinha e tem comida no fogão, cuida pra não se queimá.
Safira, sai e sobe na charrete, meio receosa.
Lá pelo meio do caminho, Vitório começa a puxar assunto e faz uma declaração: -Hô Safira, tô apaixonado por tê! Que tu acha de marca um encontro dia desse?
Safira muito nervosa e com medo, responde: -Vô pensá, depois falo pro senhor.
Enton pensa minha uva! Mas non pensa demais!
Chegando em casa , Vitório diz: - Tá qui Judite, essa é Safira, trabalhadora que só vendo!
- Si, si, eu conheço, gente boa ela!-
Safira e Judite puseram-se a despencar a uva que já estava lavada, e conversa vai, conversa vem, Judite queixa-se a Safira, que desconfia que o marido a trai, pois vive fazendo gracinha com as mulheres.
Safira, então, se encoraja e fala a Judite: - Pois é dona Judite, sô viúva, pobre, mãe de dois filho, ma sô direita e seu Vitório tá sempre me cercando. Hoje mesmo pediu pra marca encontro com ele e eu disse que ia pensá, porque fiquei com medo.
- Há! Esse sem vergonha me paga!
- Vamo fazê assim, tu diz que vai esperá ele no galpon hoje, depois que tu sai daqui, marca um lugar pra ele te dexá e vai embora, enquanto isso eu me arrumo no galpon e espero ele voltá.
- Mas ele não vai desconfiá? Diz Safira amedrontada.
Non, non, tem um atalho depois da curva que dá pro galpon, tu diz que vai pelo atalho e é pra ele dá uma volta e dexá a charrete na curva e ir depois pra non dá na vista, enquanto ele dá a volta, tu entra no mato, espera, depois corre pra casa.
- Muito obrigada dona Judite, já tava cansada, não sabia mais o que fazê!
Ao entardecer, Judite chama Vitório e diz: - Vitório, paga a Safira e leva ela pra casa que os menino eston sozinho. - Toma Safira, pon e leite, leva pros menino.
Safira agradece e sai com Vitório.
Quando saem, Vitório pergunta: - E daí, já pensô?
Claro, vamo se encontra no galpão.
Como! A Judite pode desconfiá!
Não, eu pego o atalho pro galpão lá depois da curva e quando o senhor chega, não acende a luz, te espero nos pelego e o senhor dá uma volta pra não dá na vista, depois dexa a charrete na curva e segue o atalho. Dizendo isso, Safira salta da charrete e corre para o mato. Enquanto Vitório dá a volta ela corre na direção de sua casa por outro atalho, onde ela encurtava caminho para o trabalho na lavoura.
Vitório sai mais faceiro do que maçarico do banhado, pensando: - É hoje que provo do vinho de nantra pipa nova!
- Enquanto isso, Judite vai para o galpão, se aconchega nos pelegos e espera murmurando: - Hoje eu pego este desavergonhado!
Vitório deu uma volta, retornou deixando a charrete na curva, pegou o atalho para o galpão e foi mais que depressa. Chegando lá, ele abre a porta e chama: - Minha uva de mesa roxa, onde tu tá?
-Aqui nos pelego, murmura Judite tentando disfarçar a voz para que Vitório não desconfiasse e recomenda: - Não acende a luz que tua mulher pode vê.
Vitório se aproxima dos pelego e começa o rala e rola. Quando acabam ela pergunta sussurrando: - E daí? Como foi?
Vitório fala todo gabola: - Há! Vinho de nantra pipa é sempre vinho de nantra pipa!
Judite, mais que depressa, levanta, acende a luz, dá de mão num porrete que tinha deixado do lado e deita no lombo de Vitório esbravejando: -Enton tu vai vê vinho de nantra pipa agora seu desgraçado, sem vergonha, scorssone, bísquero...
Vitório acabou ficando de cama uma semana de tanto pau que Judite deu no lombo dele, ainda teve que ouvir todo dia um sermão cheio de chingação... -Tà doendo, seu mulherengo, desavergonhado! Marca encontro de novo que eu baxo a lenha seu bisquero, maledeto squifoso...
Vitório ficou com tanta vergonha porque toda vizinhança ficou sabendo da surra que ele levou e parece que mudou de comportamento, pois não se ouviu mais falar do fanfarrão.
Disse seu Vitório: “ Vinho de nantra pipa é sempre vinho de nantra pipa!”.
Como todo italiano que se preza, seu Vitório sabia apreciar um bom vinho e uma bela mulher. Ele como agricultor que plantava arroz e cultivava parreirais, na época de colheita, sempre contratava diaristas como mão-de-obra para o trabalho, dos quais haviam homens e mulheres.
Seu Vitório era homem fagueiro, festeiro, mulherengo e vivia se engraçando com as mulheres da lida, principalmente as mocinhas. Chamava-as de uva Rosê, uva Niágara... e assim nomeáva-as com nomes de qualidades de uva de acordo com o temperamento de cada uma.
- Que uva de mesa, disse ele ao ver uma moça, corpo bem feito, alta, cabelos longos e olhos azuis, que chegou um dia em sua propriedade para ajudar na colheita, junto com os outros diaristas.
Safira, mulher viúva, mãe de dois meninos: João e José, fez-se de sonsa e respondeu: - Há! O senhor cultiva uva de mesa! Gosto muito de colher uva, ainda mais as de mesa que rendem o trabalho, são mais graúdas. E assim, dia após dia, ele fazia insinuações e gracejos com Safira e as outras mocinhas, que só pensavam em trabalhar para ajudar no sustento de casa, ignorando-o. Mesmo assim ele continuava largando indiretas como: - Adoro minhas uvas! Ainda mais as maduras!, - Minha uva gostosa, doce, tu me tonteia como vinho de pipa da boa!
Safira, já indignada com a situação constrangedora pensa: - Vou dar um jeito de falar com dona Judite pra pegar esse safado!
No dia seguinte, amanheceu chovendo muito e Judite fala: - Vitório, tu que conhece mais as mulher da lida, busca uma pra me ajudá na cozinha, que hoje vou fazê geléia de uva, aproveitá que piove e non dá pra fazê o serviço lá fora.
- Dio nono, tudo io! Piove, piove, que nem os cane non sai no terrero!
- Vá, vá! Tu tá sempre correndo lavora debaxo do tempo, aproveita e pega melancia
pra gente comê de tarde.
Lá se foi seu Vitório estrada afora com a charrete, capa e guarda-chuva, parou no caminho e colheu algumas melancias, colocou num saco nolombo do cavalo e seguiu em direção a casa de Safira. Chegando lá, parou, olhou, estava tudo fechado, ia embora, mas resolveu descer e bater.
Safira abre a porta e ele pergunta: - Posso entrar?
- Não, responde Safira, meus filhos estão deitados, o que o senhor quer?
- Non te preocupa non, só vim te busca pra ajudá a Judite na cozinha, ela vai fazê geléia de uva e pediu pra te buscá, pago bem!
Tá bem, vô vê os menino e já venho.
Safira beija os filhos e diz: - Ficam com Deus, a mãe vai trabalha pra comprá pão e leite prá janta. José o menor diz: - Tô com medo mãe!
Não fica com medo filho preciso ir, reza pro anjo da guarda. Então, João diz: - Pode dexa mãe, vô cuidá do mano.
- A mãe só vem a tardinha e tem comida no fogão, cuida pra não se queimá.
Safira, sai e sobe na charrete, meio receosa.
Lá pelo meio do caminho, Vitório começa a puxar assunto e faz uma declaração: -Hô Safira, tô apaixonado por tê! Que tu acha de marca um encontro dia desse?
Safira muito nervosa e com medo, responde: -Vô pensá, depois falo pro senhor.
Enton pensa minha uva! Mas non pensa demais!
Chegando em casa , Vitório diz: - Tá qui Judite, essa é Safira, trabalhadora que só vendo!
- Si, si, eu conheço, gente boa ela!-
Safira e Judite puseram-se a despencar a uva que já estava lavada, e conversa vai, conversa vem, Judite queixa-se a Safira, que desconfia que o marido a trai, pois vive fazendo gracinha com as mulheres.
Safira, então, se encoraja e fala a Judite: - Pois é dona Judite, sô viúva, pobre, mãe de dois filho, ma sô direita e seu Vitório tá sempre me cercando. Hoje mesmo pediu pra marca encontro com ele e eu disse que ia pensá, porque fiquei com medo.
- Há! Esse sem vergonha me paga!
- Vamo fazê assim, tu diz que vai esperá ele no galpon hoje, depois que tu sai daqui, marca um lugar pra ele te dexá e vai embora, enquanto isso eu me arrumo no galpon e espero ele voltá.
- Mas ele não vai desconfiá? Diz Safira amedrontada.
Non, non, tem um atalho depois da curva que dá pro galpon, tu diz que vai pelo atalho e é pra ele dá uma volta e dexá a charrete na curva e ir depois pra non dá na vista, enquanto ele dá a volta, tu entra no mato, espera, depois corre pra casa.
- Muito obrigada dona Judite, já tava cansada, não sabia mais o que fazê!
Ao entardecer, Judite chama Vitório e diz: - Vitório, paga a Safira e leva ela pra casa que os menino eston sozinho. - Toma Safira, pon e leite, leva pros menino.
Safira agradece e sai com Vitório.
Quando saem, Vitório pergunta: - E daí, já pensô?
Claro, vamo se encontra no galpão.
Como! A Judite pode desconfiá!
Não, eu pego o atalho pro galpão lá depois da curva e quando o senhor chega, não acende a luz, te espero nos pelego e o senhor dá uma volta pra não dá na vista, depois dexa a charrete na curva e segue o atalho. Dizendo isso, Safira salta da charrete e corre para o mato. Enquanto Vitório dá a volta ela corre na direção de sua casa por outro atalho, onde ela encurtava caminho para o trabalho na lavoura.
Vitório sai mais faceiro do que maçarico do banhado, pensando: - É hoje que provo do vinho de nantra pipa nova!
- Enquanto isso, Judite vai para o galpão, se aconchega nos pelegos e espera murmurando: - Hoje eu pego este desavergonhado!
Vitório deu uma volta, retornou deixando a charrete na curva, pegou o atalho para o galpão e foi mais que depressa. Chegando lá, ele abre a porta e chama: - Minha uva de mesa roxa, onde tu tá?
-Aqui nos pelego, murmura Judite tentando disfarçar a voz para que Vitório não desconfiasse e recomenda: - Não acende a luz que tua mulher pode vê.
Vitório se aproxima dos pelego e começa o rala e rola. Quando acabam ela pergunta sussurrando: - E daí? Como foi?
Vitório fala todo gabola: - Há! Vinho de nantra pipa é sempre vinho de nantra pipa!
Judite, mais que depressa, levanta, acende a luz, dá de mão num porrete que tinha deixado do lado e deita no lombo de Vitório esbravejando: -Enton tu vai vê vinho de nantra pipa agora seu desgraçado, sem vergonha, scorssone, bísquero...
Vitório acabou ficando de cama uma semana de tanto pau que Judite deu no lombo dele, ainda teve que ouvir todo dia um sermão cheio de chingação... -Tà doendo, seu mulherengo, desavergonhado! Marca encontro de novo que eu baxo a lenha seu bisquero, maledeto squifoso...
Vitório ficou com tanta vergonha porque toda vizinhança ficou sabendo da surra que ele levou e parece que mudou de comportamento, pois não se ouviu mais falar do fanfarrão.

Disse seu Vitório: “ Vinho de nantra pipa é sempre vinho de nantra pipa!”.
Como todo italiano que se preza, seu Vitório sabia apreciar um bom vinho e uma bela mulher. Ele como agricultor que plantava arroz e cultivava parreirais, na época de colheita, sempre contratava diaristas como mão-de-obra para o trabalho, dos quais haviam homens e mulheres.
Seu Vitório era homem fagueiro, festeiro, mulherengo e vivia se engraçando com as mulheres da lida, principalmente as mocinhas. Chamava-as de uva Rosê, uva Niágara... e assim nomeáva-as com nomes de qualidades de uva de acordo com o temperamento de cada uma.
- Que uva de mesa, disse ele ao ver uma moça, corpo bem feito, alta, cabelos longos e olhos azuis, que chegou um dia em sua propriedade para ajudar na colheita, junto com os outros diaristas.
Safira, mulher viúva, mãe de dois meninos: João e José, fez-se de sonsa e respondeu: - Há! O senhor cultiva uva de mesa! Gosto muito de colher uva, ainda mais as de mesa que rendem o trabalho, são mais graúdas. E assim, dia após dia, ele fazia insinuações e gracejos com Safira e as outras mocinhas, que só pensavam em trabalhar para ajudar no sustento de casa, ignorando-o. Mesmo assim ele continuava largando indiretas como: - Adoro minhas uvas! Ainda mais as maduras!, - Minha uva gostosa, doce, tu me tonteia como vinho de pipa da boa!
Safira, já indignada com a situação constrangedora pensa: - Vou dar um jeito de falar com dona Judite pra pegar esse safado!
No dia seguinte, amanheceu chovendo muito e Judite fala: - Vitório, tu que conhece mais as mulher da lida, busca uma pra me ajudá na cozinha, que hoje vou fazê geléia de uva, aproveitá que piove e non dá pra fazê o serviço lá fora.
- Dio nono, tudo io! Piove, piove, que nem os cane non sai no terrero!
- Vá, vá! Tu tá sempre correndo lavora debaxo do tempo, aproveita e pega melancia
pra gente comê de tarde.
Lá se foi seu Vitório estrada afora com a charrete, capa e guarda-chuva, parou no caminho e colheu algumas melancias, colocou num saco nolombo do cavalo e seguiu em direção a casa de Safira. Chegando lá, parou, olhou, estava tudo fechado, ia embora, mas resolveu descer e bater.
Safira abre a porta e ele pergunta: - Posso entrar?
- Não, responde Safira, meus filhos estão deitados, o que o senhor quer?
- Non te preocupa non, só vim te busca pra ajudá a Judite na cozinha, ela vai fazê geléia de uva e pediu pra te buscá, pago bem!
Tá bem, vô vê os menino e já venho.
Safira beija os filhos e diz: - Ficam com Deus, a mãe vai trabalha pra comprá pão e leite prá janta. José o menor diz: - Tô com medo mãe!
Não fica com medo filho preciso ir, reza pro anjo da guarda. Então, João diz: - Pode dexa mãe, vô cuidá do mano.
- A mãe só vem a tardinha e tem comida no fogão, cuida pra não se queimá.
Safira, sai e sobe na charrete, meio receosa.
Lá pelo meio do caminho, Vitório começa a puxar assunto e faz uma declaração: -Hô Safira, tô apaixonado por tê! Que tu acha de marca um encontro dia desse?
Safira muito nervosa e com medo, responde: -Vô pensá, depois falo pro senhor.
Enton pensa minha uva! Mas non pensa demais!
Chegando em casa , Vitório diz: - Tá qui Judite, essa é Safira, trabalhadora que só vendo!
- Si, si, eu conheço, gente boa ela!-
Safira e Judite puseram-se a despencar a uva que já estava lavada, e conversa vai, conversa vem, Judite queixa-se a Safira, que desconfia que o marido a trai, pois vive fazendo gracinha com as mulheres.
Safira, então, se encoraja e fala a Judite: - Pois é dona Judite, sô viúva, pobre, mãe de dois filho, ma sô direita e seu Vitório tá sempre me cercando. Hoje mesmo pediu pra marca encontro com ele e eu disse que ia pensá, porque fiquei com medo.
- Há! Esse sem vergonha me paga!
- Vamo fazê assim, tu diz que vai esperá ele no galpon hoje, depois que tu sai daqui, marca um lugar pra ele te dexá e vai embora, enquanto isso eu me arrumo no galpon e espero ele voltá.
- Mas ele não vai desconfiá? Diz Safira amedrontada.
Non, non, tem um atalho depois da curva que dá pro galpon, tu diz que vai pelo atalho e é pra ele dá uma volta e dexá a charrete na curva e ir depois pra non dá na vista, enquanto ele dá a volta, tu entra no mato, espera, depois corre pra casa.
- Muito obrigada dona Judite, já tava cansada, não sabia mais o que fazê!
Ao entardecer, Judite chama Vitório e diz: - Vitório, paga a Safira e leva ela pra casa que os menino eston sozinho. - Toma Safira, pon e leite, leva pros menino.
Safira agradece e sai com Vitório.
Quando saem, Vitório pergunta: - E daí, já pensô?
Claro, vamo se encontra no galpão.
Como! A Judite pode desconfiá!
Não, eu pego o atalho pro galpão lá depois da curva e quando o senhor chega, não acende a luz, te espero nos pelego e o senhor dá uma volta pra não dá na vista, depois dexa a charrete na curva e segue o atalho. Dizendo isso, Safira salta da charrete e corre para o mato. Enquanto Vitório dá a volta ela corre na direção de sua casa por outro atalho, onde ela encurtava caminho para o trabalho na lavoura.
Vitório sai mais faceiro do que maçarico do banhado, pensando: - É hoje que provo do vinho de nantra pipa nova!
- Enquanto isso, Judite vai para o galpão, se aconchega nos pelegos e espera murmurando: - Hoje eu pego este desavergonhado!
Vitório deu uma volta, retornou deixando a charrete na curva, pegou o atalho para o galpão e foi mais que depressa. Chegando lá, ele abre a porta e chama: - Minha uva de mesa roxa, onde tu tá?
-Aqui nos pelego, murmura Judite tentando disfarçar a voz para que Vitório não desconfiasse e recomenda: - Não acende a luz que tua mulher pode vê.
Vitório se aproxima dos pelego e começa o rala e rola. Quando acabam ela pergunta sussurrando: - E daí? Como foi?
Vitório fala todo gabola: - Há! Vinho de nantra pipa é sempre vinho de nantra pipa!
Judite, mais que depressa, levanta, acende a luz, dá de mão num porrete que tinha deixado do lado e deita no lombo de Vitório esbravejando: -Enton tu vai vê vinho de nantra pipa agora seu desgraçado, sem vergonha, scorssone, bísquero...
Vitório acabou ficando de cama uma semana de tanto pau que Judite deu no lombo dele, ainda teve que ouvir todo dia um sermão cheio de chingação... -Tà doendo, seu mulherengo, desavergonhado! Marca encontro de novo que eu baxo a lenha seu bisquero, maledeto squifoso...
Vitório ficou com tanta vergonha porque toda vizinhança ficou sabendo da surra que ele levou e parece que mudou de comportamento, pois não se ouviu mais falar do fanfarrão.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Imagem e poesia para o Blog


Abaporu (do tupi-guarani aba e poru, "homem que come")
 Obra da brasileira Tarsila do Amaral, pintado em 1928



MULHER QUE COME

Era a comida a diversão predileta
Que sobre uma pequena mesa a fartura prevalecia.
A balança era inimiga
Que no inverno mais a desfavorecia.
Era forte mas se fragilizava
Quando suas medidas aumentava.
Seu cérebro, uma formiga,
Uma lipo desejava.
No pequeno espelho a grande imagem
Que o seu eu transformava.
Comer é algo que muito se quer
Mas o corpinho não metabolizava.
Quanto mais na balança subia
Mais o corpo pesava.

A Cartomante


                                                    A Cartomante
HAMLET observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Mais ou menos assim também dizia minha nona quando afirmava que onde tem fumaça tem fogo.  Era a mesma explicação que dava a bela Nita ao moço Ramiro, numa sexta-feira 13, as margens do Rio Soturno, num lindo dia na Quarta Colônia, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. São uns “baucos”, como já dizia a nona.  Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, sempre de olho no seu laptop sobre a mesa, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! interrompeu Ramiro, rindo. Está confiando muito no seu taco gringa!!!
— Não diga isso, Ramiro. Se você soubesse como eu tenho andado por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... passo as tardes à beira do Soturno refletindo sobre isso.
Ramiro pegou-lhe nas mãos, observou seus lindos anéis e suas unhas decoradas, mania da época.  Olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas ruas. Varela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar no  prédio.
— Onde é o apartamento?
— Aqui perto, na Alameda. Não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Ramiro riu outra vez: — Tu acreditas mesmo nessas coisas? Perguntou-lhe. 
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Nenhum momento esquecia as palavras da Nona. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.
Percebeu que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso. Teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que ao passar dos anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Ramiro não acreditava em nada. Mama mia, que descrente! Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mais, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando. Nesse momento, brincou com a cachorrada que estava próxima, e saiu batendo os “cascos”.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Nita estava certa de ser amada; Ramiro, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. Era o garanhão!  Homem de verdade.
O local do encontro era no antigo condomínio dos Padres Palotinos, na pequena cidade de Faxinal do Soturno, onde próximo morava uma antiga amiga de Nita. Popularmente conhecido como antigo Seminário, dentre os corredores abandonados é que se escondiam os segredos desse amor.
Esta desceu pela Alameda do Santuário na direção da praça matriz, onde residia; Ramiro desceu pela rua
Trinta de Novembro, olhando de passagem para a antiga casa da cartomante.
Varela, Ramiro e Nita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Varela seguiu a carreira de Advogado. Ramiro entrou no poder público municipal, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Ramiro preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público com seu amigo prefeito. Um dia, voltou Varela da capital, onde casara com uma dama formosa e meio bobinha; abandonou a advocacia e veio abrir banca do jogo do bicho. Isso lhe rendeu muito dinheiro, mesmo que fosse ilegal. Mas Varela sabia driblar a lei com seu jeitinho brasileiro, a assim foi enriquecendo.
Ramiro arranjou-lhe um belo apartamento para os lados da Escola Dom Antônio Reis, e foi ao aeroporto de Santa Maria recebê-lo. Havia comprado o melhor carrão da Quarta Colônia da marca Audi, certamente vindo de alguma enchente de São Paulo, pois o preço foi muito abaixo da tabela Fipe. Mas contentou-se mesmo assim. Estava se sentindo o cara.
—E aí Gringo? Exclamou Nita, estendendo-lhe a mão com suas lindas unhas decoradas.  Não imagina como meu marido é seu amigo. Falava sempre em você e das aventuras no interior.  Das arapucas que faziam, dos bodoques para caçar passarinho e das pescarias no Rio Soturno.
Ramiro e Varela olharam-se com ternura. Eram amigos de sangue. Depois, Ramiro confessou de si para si que a mulher do Varela não desmentia os emails do marido. Realmente era graciosa e viva nos gestos, olhos bem pintados, boca carnuda e provocativa. Dona de lindas pernas esculpidas e belos peitos siliconados com longos cabelos tratados com escova progressiva. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Varela vinte e nove e Ramiro vinte e seis.
Entretanto, a calvície de Varela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Ramiro era um ingênuo na vida moral e prática. Adorava passar as tardes tomando uma gelada no Bar da Mari na avenida central com os amigos. Quando podia fazer uma fezinha no jogo do bicho não desperdiçava.
 Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos da Óptica Orlandi, que a natureza põe no berço de
alguns para adiantar os anos. Mas seu desejo, com o tempo era colocar lentes de contato aqui mesmo na cidade, na Clínica oftalmológica. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Ramiro, vítima do mosquito da dengue. E nesse desastre que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Pobre nona. Que descanse na paz do Senhor. Fazia uma polenta como ninguém. E o mondongo então... Ah não fosse o cheiro desagradável, mas o sabor era inigualável.
Varela cuidou do enterro, das flores providenciadas junto a Floricultura Mazzolin de Fiori, dos sufrágios e do inventário; Nita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, observando aquele corpo escultural, muitas vezes na barranca do rio.  Era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher, bonita, um tremendo avião. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, adoravam Playstation III, iam juntos ao shopping e passeios no São Pio. Ramiro ensinou-lhe as o jogo de paciência no PC e o The sims que jogavam às noites; —ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas iam bem. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Nita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas, as sigilosas mensagens ao celular.
Um dia, fazendo ele aniversário, recebeu de Varela uma garrafa de graspa com uma guampa e um jogo dos mais finos espetos para churrasco personalizados para o amigo e de Nita apenas um pedaço de papel de pão com um vulgar cumprimento a lápis, escrito após Nita chegar da Padaria Bisognin com o pão quentinho e foi então que ele pôde ler no próprio coração, a suspeita da traição.  Não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho ainda cheirando a pão.  Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha praça da matriz, em que pela primeira vez passeara com a mulher amada, tomando sorvete, sentados sobre os degraus da Igreja, ao sol de uma tarde de domingo sob os olhos do padroeiro.
Assim é o homem, assim são as coisas que o cercam. Assim são as mulheres. Ah.. essas mulheres!
Ramiro quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Nita, como uma serpente, foi se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o chinelo havaianas se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima dos paralelepípedos da avenida, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Varela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Ramiro um sms anônimo, que lhe chamava imoral, traidor, canalha e dizia que o caso de aventura era sabido de todos. Em breve o You Tube publicaria alguns de seus vídeos comprovando a imoralidade do casal. As velhinhas após a missa do domingo já comentavam o fato nas esquinas do centro da cidade. Ramiro teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a diminuir as visitas à casa de Varela. Este notou-lhe as ausências. Ramiro respondeu que o motivo era uma paixão pelo MSN que lhe roubava o tempo teclando. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entra também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a pena a ser paga pela infração do  ato cometido. Foi por esse tempo que Nita, desconfiada e com medo de ser descoberta, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do sumiço de Ramiro. Teria ele encontrado outra mulher no Chat Terra? Teria encontrado no disk namoro alguém com cabelos mais lisos do que ela? Seria alguma gringa da Quarta Colônia o motivo do seu sumiço? Uma dessas que faz polenta, geléia de uva e pão como ninguém?
Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Ramiro recebeu mais dois ou três emails, bem como algumas mensagens no celular de número restrito  tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Nita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento:
— A virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Ramiro ficou mais sossegado; temia que o anônimo o delatasse a Varela e a catástrofe viria então sem remédio. Nita concordou que era possível. E o peso do remorso e do medo começou a se revelar.
Daí a algum tempo Varela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Nita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Ramiro devia voltar à casa deles, montar campeonato de Play Statin entre eles, planejarem pescarias e assim tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Ramiro não concordava; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita do casou ou denúncia. Mais valia ter mais cuidado sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram corresponderem-se através de emails, scraps e sms em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas, muita dor.
— Não se vá, não me abandone por favor, pois sem você vou ficar louco...
No dia seguinte, estando no trabalho, recebeu Ramiro este bilhete de Varela escrito no próprio papel do jogo do bicho: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te em particular. Vem sem demora." Era mais de meio-dia pelo horário de verão.  Ramiro saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, pareceu-lhe trêmula. Ele combinou todas essas coisas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel e suor no rosto.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Nita subjugada e lacrimosa negando veemente a traição, Varela indignado, pegando da caneta e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Ramiro estremeceu, tinha medo de ser descoberto: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. Jamais um gaúcho macho recuaria. Lembrava que a vó dizia – Seja Macho como tua vó já foi um dia. De caminho, lembrou-se de dar uma passadinha no seu apartamento; podia achar algum recado de Nita na caixa de correio, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verdadeira; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Varela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto. Estava mesmo sendo descoberto. Varela sentir-se-ia um “corno” traído.
Ramiro ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Varela cantando-lhe ao pé do ouvido “O jeito é dá uma fugidinha com você... primeiro a gente foge depois a gente vê...”
"Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê?
Era perto de uma hora da tarde e a camada de raios UVB queimava-lhe o rosto sem protetor solar que havia deixado sobre a mesa do escritório. A comoção crescia de minuto a minuto. Jurava para si mesmo nunca mais envolver-se com mulher alheia. Pensou até em assistir todas as missas de domingo até o fim de seus dias. Pensou também entrar para a congregação dos Palotinos, quem sabe seria o melhor a ser feito se suas suspeitas não se confirmassem.
Tanto imaginou o que iria se passar que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo.  Cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil.  Pensou em ligar para um conhecido morador do Morro do Alemão, porém, desistiu diante da ocupação da polícia no último mês. Logo seria descoberto então desistiu da ideia envergonhada de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção da Alameda do Santuário. Antes parou, ajoelhou-se junto a Mãe MTA e rezou. Chegou, entrou e seguiu a trote largo.
"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."
 O tempo voava, e ele não tardaria a bater com o perigo. Quase no fim da Alameda teve de parar, a rua estava atravancada com a carroça de um catador que caíra devido ao excesso de peso. Era dia de coleta de material reciclável e os moradores haviam descartado muita coisa. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, junto ao pé de canela ficava a casa da cartomante, a quem Nita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e cheias de curiosos do incidente da rua.
Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Ramiro reclinou-se no pé de canela para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. As lembranças da nona eram fortes. O medo que ela tinha do pecado, e a certeza do inferno que ela tanto temia.
 O catador propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperava. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: — Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Ramiro fechava os olhos, pensava em outras coisas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras do bilhete: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. Lembrou das orações da nona, mas não sabia todas elas. Se ao menos tivesse aprendido...
A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar. Ramiro achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários: e de novo a mesma frase da música do Michel Teló: “O jeito é, da uma fugidinha com você.. primeiro a gente foge, depois a gente vê....”
Deu por si na calçada, ao pé da porta. Deixou seu Audi estacionado a sombra, por medo que o sol desbotasse os bancos. Ligou o alarme e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, não eram lâmpadas econômicas. Os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso certamente pela falta de limpeza; mas ele não, viu nem sentiu nada.
Subiu e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. A campainha não funcionava. Veio uma mulher; era a cartomante.
Sua aparência era envelhecida, mas não era tão feia assim. Usava brincos grandes e vestido longo. Calçava lindas plataformas.
Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal iluminada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos.
Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio. Que falta fazia um financiamento pelo “Minha casa, minha vida” para esta mulher. Certamente seu crédito não seria aprovado pela falta de comprovação financeira.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Ramiro. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, bem gringa, daquelas levemente loiras e magras, com grandes olhos azuis. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Ramiro, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas com esmalte fosco nas cores da moda; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Ramiro tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Ramiro inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Nita, de seus belos silicones, e do bem que lhe faria uma lipoaspiração. Também falou da possibilidade de uma fezinha dar certo e ele ficar milionário, apostando na cobra. Ramiro estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante, observando fixamente suas lindas unhas.
Esta se levantou rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato... vá pra balada. Aproveite o Kasarão Arena. Só lembre-se de uma coisa: Se beber não dirija.
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Ramiro estremeceu, como se fosse a mão da própria nona, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes limpando-os com as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Ramiro, ansioso por sair, não sabia quanto pagar; ignorava o preço. Lembrou que estava com seu Visa na carteira e todos seus talões de cheques.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas queres mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Ramiro tirou duas notas de cem reais e deu-lhe. Os olhos da cartomante brilharam. O preço usual era cinquenta reais.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do Senhor.  Vá, vá, tranquilo. Olhe a escada, é escura; ponha o boné que o sol está quente lá fora...
A cartomante tinha já guardado as notas na cômoda, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Ramiro despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com as notas de cem subia cantarolando Michel Teló. Ramiro achou o pé de Canela esperando; a rua estava livre. Entrou no carro e seguiu acelerando. Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Varela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele acelerando seu possante Audi. Naquele momento pensou até em adquirir uma Ferrari, mas deixou para decidir mais tarde.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade...  Pensou em dar um Play Station de presente ao amigo e ensinar-lhe a jogar Guitar Hero. De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação:— Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pelo asfalto, Ramiro olhou para o Rio Soturno, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável, ou nem tanto assim.  Jurou para si mesmo também cuidar da saúde e caminhar todas as tardes na ciclovia, assim poderia admirar o Soturno ao final do trajeto, observando o pôr do sol.
Pensou também em subir o São Pio uma vez por mês a pé, rezando todo o trajeto e quando estivesse lá em cima, cantaria louvores ao senhor por ser tão bom e generoso.
Daí a pouco chegou à casa de Varela. Desceu do Audi, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou.  Um gato pulguento dormia a beira da calçada, mas ele ignorou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se com o controle remoto e apareceu-lhe o poderoso rei do jogo do bicho Varela. Acho que os últimos fios que lhe sobravam na cabeça não mais se encontravam nela. Teria ele mudado o shampoo?
— Desculpa, não pude vir mais cedo; estava fazendo compras para o final de semana, sabe como são os mercados daqui... quê há?
Varela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Ramiro não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre a parreira, estava Nita morta e ensangüentada.
Cartomante fajuta. Levou os duzentos do gringo!
Varela pegou-o pela gola da camisa de algodão, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
                                                                            FIM

Intertextualidade: A Cartomante x O Bojunga

Esta história foi baseada no conto “A cartomante” de Machado de Assis, e um fato ocorrido em nossa região e tem o intuito de descrevê-lo, sendo ele parcialmente verídico. Resgatando assim alguns costumes da região onde moramos...
O Bojunga

Nona Elisa dizia sempre aos mais dispersos de sua roda de chimarrão que o Bojunga havia morrido com a cuia na mão!
Em meio a um fim de tarde de Janeiro de 2005, a menina Luiza pegou-se a rir de sua nona Elisa, pois enquanto tomavam mate na varanda da casa e devido à demora de seu pai Ademir em passar a cuia, ouviu o seguinte bordão que dizia:
- Mas bah, o Bojunga morreu com a cuia na mão!
Logo seu pai apressou-se em terminar o que havia iniciado, deixando a conversa um pouco de lado.
No entanto Luiza ficou intrigada com o que a sua nona havia dito e logo quis saber o por quê? Solicitou explicações e todos se olharam e riram como se dissessem: “Você não sabe?”
Com isso o nono Alcides chegou da lida, e logo tratou de adentrar a roda de chimarrão e se prontificou em contar a história...
Dizia ele...
Conta-se que no interior de Dona Chica, ou Dona Francisca, morava um gaudério simples, moreno, alto e magro, porém forte, que usava bigodes compridos, ele também gostava de andar pilchado e que de usar um chapéu de aba larga. Era casado com a Dona Maria, famosa por fazer cucas e pães de amendoim, ambos sovados com tanto carinho que eram apreciados por toda a região. A massa era macia como algodão e o recheio suculento e feito com os mais nobres doces de leite caseiros e pedaços de amendoim que cristalizados, tilintavam na boca...
- Hum, disse Luiza, dá água na boca só de imaginar!
- Bem, continuemos então disse o nono, pois a história ainda não está nem na metade...
Também tivera dois filhos com a Dona Maria, um dos gurizotes até dava gosto de ver, pois gostava de música e cantava que nem sabiá na barranca do rio.
Como de costume chimarreava todos os dias e com a prenda mais nos fins de tarde, pois era a hora de descanso depois da lida diária. Parece que cansava deveras, já que era calmo que nem “água de poço” e passava o dia chimarreando na venda acocorado num banquinho de “Ciro”, como dizia, e no inverno, ia pra caixa da lenha perto do fogão onde era mais quente.
Ele gostava tanto do mate que quando alguém chegava para comprar ele gritava: “Maria vem atender!”, chamava a prenda pra atender no balcão, e não levantava, ficava lá, tomando mate. Como era um homem alto, suas pernas eram compridas, sentava e as entrelaçava, assim como “cobra em combate”, era o único que conseguia fazer isso.
Maria, já acostumada com a situação, como sempre, ia ver o que o freguês precisava e deixava o homem recostado.
O seu bolicho era um dos primeiros por aqui nos aprochegos da cidade. Lá se vendia de tudo um pouco e por isso todos o conheciam.
Bojunga adorava tomar chimarrão e jogar baralho, todos iam ao seu bolicho para comprar e aproveitavam para tomar uns mates e jogar cartas com ele. O local era também um ponto de encontro. Por isso queria, preferia ficar por ali.
Normalmente nos fins de tarde quando o serviço acalmava e dona Maria pedia para darem umas voltas ele não arredava o pé, pois aquela era a hora de ouvir o seu programa de rádio favorito, “o programa do Beto Jordani” como ele costumava chamar. E lá ficava seu Bojunga sentado na varanda de sua casa, de ouvido grudado no seu pequeno e velho rádio a pilha.  Já Dona Maria ficava furiosa, de cara fechada, mas no dia seguinte voltava a insistir, convidando-o novamente.
Mas o que ele gostava mesmo era de ver a Carrera de cavalos, tinha uma hípica que ficava logo ao lado. Então, no sábado esta era mais uma das diversões do seu Bojunga, era um grande apostador, na verdade, embora fosse proprietário de um modesto bolicho, era muito afortunado, herdou terras e economias deixadas pelo seu finado pai, terras as quais ele arrendava pelas redondezas. Seu Bojunga era um grande apostador de Carrera de cavalos, algo que incomodava muito a Dona Maria e que a deixava preocupada, já que sempre havia o risco de perda. Mas seu Bojunga sempre contava com a sorte.

Certa feita apareceu por aquelas bandas um sujeito desconhecido que não pertencia às redondezas, este fato foi motivo de especulação por parte da pequena e pacata comunidade. Todos se perguntavam: “Quem será?” “De onde vem?” “O que pretende?”
No bolicho de seu Bojunga então... O forasteiro era assunto principal das rodas do chimarrão e durante o jogo de cartas. Até que um belo dia para o espanto de todos, o forasteiro surgiu no estabelecimento.  Apresentou-se como Altamir, dizendo ser das bandas de Rosário do Sul e que havia comprado um pedaço de terras por aqui. Era viúvo, um homem de meia idade, sem grandes sinais do tempo, ou seja, aparentava ser até mais jovem.
Logo ele foi se enturmando e passou a fazer parte dos assíduos freqüentadores do bolicho e também passou chamar a atenção de Maria, pois era muito bem apessoado, parecia ser muito cavalheiro, pois era sempre gentil e educado.
Quase todos os dias ele passava na venda para comprar algo e às vezes em vez de ficar na roda de conversa com os homens, se dispersava e puxava umas conversas com Maria enquanto fazia as compras da semana. E com o passar do tempo o encanto aumentou tanto que era até difícil se conterem em rápidos olhares à distância.
E a vida continuava tranquilamente até que certo dia Maria, antes de sair para a missa das dezoito horas, como fazia todos os sábados recebeu um estranho bilhete de um menino da vizinhança que dizia:
“Não vá à missa hoje, me encontre na primeira curva na estrada dos pinheiros, precisamos nos falar. Com estimas, Altamir.”
Ao terminar e ler o bilhete ficou gélida e seu coração quase explodiu de tanta emoção. Por alguns segundos seu pensamento foi longe, mas ao mesmo tempo estava insegura do que pudera acontecer.
E assim Maria passou a fazer o combinado e não ia à missa.  O desvio pelo caminho facilitava, pois era na metade do caminho.
Como Maria saía sempre a cavalo, não demorava a voltar, mas com o passar do tempo a empolgação era tanta que algumas vezes até a hora perdera.
Certa vez o tal menino lhe entregou o bilhete e Bojunga achou aquilo estranho. Ela sorriu e descartou qualquer hipótese inicial, dizendo-lhe que eram apenas algumas compras de última hora, por isso o menino veio buscar.
E o tempo continuou passando e os encontros acontecendo...
Certa manhã, uma das senhoras da comunidade veio comprar pão e perguntou de Maria a Bojunga:
- Seu Bojunga, e Dona Maria como vai? Diga para ela aparecer qualquer dia lá em casa pra eu passar pra ela uma nova receita de bolo!
 Naquele momento Bojunga teve que conter-se em dúvidas, mas não quisera perguntar, receoso da resposta que levaria em troca.
Apenas agradeceu e disse que Maria precisou ir até a casa da mãe para levar-lhe alguns mantimentos, já que havia ficado um pouco doente naquela semana e devido ao contratempo estava acamada.
Mas a sovina da Dona Cecília sabia o que algumas senhoras da vizinhança murmuravam a respeito de Maria e Altamir, sorriu e agradecendo foi embora feliz por notas a cara de susto de Bojunga.
Ao chegar da casa da mãe, Bojunga deu o recado a Maria, mas não deixou de dizer que havia achado estranho Dona Cecília perguntar por ela, já que as duas se viam todos os sábados.
Maria ao querer contornar o assunto, respirou fundo e disse:
- Engraçado, porque eu encontro ela quase todas as vezes que vou à missa... Vai ver que ela se esqueceu de me passar a receita, mas outro dia vou até lá buscar.
Mesmo assim Bojunga ficou com certa desconfiança e Maria percebendo, resolveu avisar Altamir.
Com a diminuição dos encontros e das visitas de Altamir à bodega, a paixão aumentava, mas tinham de conter-se, pois a especulação pelos arredores era tamanha.
Então numa manhã de sexta-feira, Maria precisou ir às pressas até a casa de sua mãe, pois a saúde dela havia piorado.
Neste tempo, deixou a cargo de Bojunga e seus filhos os cuidados da bodega. Nisso adentra o menino do bilhete que Altamir mandara com outro na mão.
Ao chegar à venda, avistou o filho mais novo e perguntou a ele sobre sua mãe.
Ele disse que ela havia ido até a casa da avó, mas que não tardara.
Então deixou o bilhete pedindo que a entregasse, dizendo que eram algumas encomendas.
Quando Bojunga, que havia ido buscar mais água para o mate, adentrou da cozinha e perguntou a seu filho, quem havia estado lá.  Ele explicou que eram apenas uma encomenda feita pelo senhor Altamir e que um menino havia deixado para sua mãe separar.
Mas Bojunga pensou em voz alta:
-Por que ele não esperou que eu separava pra ele?
-Não sei! Respondeu o filho.
Sentou, pegou sua cuia na mão e continuou tomando solito seu chimarrão, tranqüilo e sereno até que as companhias chegassem.
Certo momento lembrou-se do bilhete, franziu a testa e então ele disse:
-Filho, me dê aqui este bilhete, deixe-me ver o que ele quer!
Ao abrir e ler o bilhete deparou-se com os seguintes versos:
“Prenda minha, prenda minha,
preciso hoje te ver,
estamos com sérios problemas,
poderei o dia não amanhecer.
Não falte a nosso encontro
Ele será definitivo,
Peço que fujas comigo esta noite.
Meu amor está sempre contigo.”
              De seu amado, Altamir.
Lendo aqueles versos, Bojunga não pôde segurar tamanha emoção pois aquelas palavras foram tão afiadas como navalha de barbeiro caprichoso. Neste instante, apenas suspirou!
Neste instante adentra a bodega um conhecido pra filar um mate, já que era perto do meio dia. Cumprimenta e apenas os meninos respondem, achou estranho e tentou puxar conversa. Bojunga não fazia cerimônia pra essas coisas, mas ficou recostado e pediu um mate. Então decidiu chamá-lo novamente e cumprimentar com um tapinha nas costas como de costume. Foi neste momento que percebeu que algo estava errado...
Bojunga havia enfartado, ou seja, morrido. A demora em perceber o acontecido, era porque ele gostava muito de tomar mate e às vezes demorava em passar a cuia.
Então, quando alguém demora a passar a cuia na roda do chimarrão, alguém diz: O Bojunga!, ou, O Bojunga morreu com a cuia na mão! A pessoa entende que ta demorando a tomar o chimarrão e se apressa.